quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O Penteado (Dom Casmurro)

Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não esquecestes que ela era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.
-- Senta aqui, é melhor.
Sentou-se. «Vamos ver o grande cabeleireiro», disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções eguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tacto aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito, para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa...Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfas; digamos somente uma creatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs. Enfim, acabei as duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas? Em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra, alargando aqui, achatando ali, até que exclamei:
-- Prompto!
-- Estará bom?
-- Veja no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de um na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.
-- Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça, e ficámos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...
Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam, vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas...Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos.

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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Adriana Calcanhotto - Me dê Motivo


Chave.

O que tenho que dizer e o que não há pra esconder. 

É preciso dizer.

Que caí teu véu na bruma da noite e desfigura tua face com os desejos mais ocultos. Mas não se faça, não se meça. Carpir tuas dores no lamento sem fim das conjuras que esconde nas madrugadas é solidão. 

E não se faça de inocente, não te veja como um pequeno madrilês tropeçando perdido pelas calçadas de Barcelona. Não estar em seu lugar é não estar em si, insanidade premeditada, postada, identidade aniquilada.

Caleja os dedos em teus livros e desperta o ímpeto empecilho de se entender, de se doar. Leia uma paixão, uma loucura. Leia um medo, uma ternura. Leia Dom Casmurro e se esqueça do mundo. Nada além do que se quer, nada além de um sonho ou de planos que no futuro serão esquecidos.

Ame um dia como ama um beija flor, que ama a especie e não a individualidade, ame como  alguém amou nos livros, irremediável, perdida, desmedidamente e não deixe morrer, pelo menos não sem motivo, porque só perece os caminhos frágeis. Só desfalcacem os olhares leias, pois os dissimulados são eternos.

Abramos a nossas mentes como as champanhes de fim de ano, abramos e joguemos as chaves foras.